esta newsletter está nua. e não há outro jeito de dourar a confissão que vocês receberão hoje.
quando comecei este projeto, um ano e dois meses atrás, eu disse que não falaria de onde vinha o símbolo onipresente por aqui, para vocês não pegarem bode de mim. o guarda-chuva com o copo era só uma insígnia meio aleatório, que terminei por tatuar no meu braço esquerdo também. mas agora chegou a hora do chá revelação.
o símbolo vem de uma pintura de rené magritte, o pintor surrealista belga. reza a lenda que ele foi desafiado a pintar um copo de uma forma que não fosse banal e daí surgiu a ideia de pousá-lo sobre um guarda-chuva. batizada de "as férias de hegel", a pintura hoje pertence a uma coleção privada, e eu bem gostaria de saber onde está. minha única pista é que o metropolitan, em nova iorque, vende ímãs de geladeira dela (na verdade, em vez do copo, há uma taça – uma variação que magritte pintou também), mas não fui lá depois de descobrir isso para iniciar uma empreitada detetivesca.
tatuei a imagem no braço porque acho uma bela homenagem a esse gênio da história da filosofia. a hegel, com carinho. mas é uma homenagem sobretudo às contradições todas que nos rondam e me atormentam.
desde então, porto com orgulho e reverência a chuva toda, e adoro falar às pessoas o porquê de ter isso tatuado no braço. ninguém a quem mostrei até agora imagina que um maluco do século 19 foi quem me serviu de inspiração, com a exceção de um fotógrafo muito triste que conheci outro dia e via uma série de TV sobre uma convenção de pessoas que adoram aspiradores de pó (sim, você entendeu certo).
sábado passado, exatamente um ano depois de fazer a tatuagem aqui comentada, outra referência me atropelou.
eis que estou com uma amiga em um restaurante mexicano, cujo chef ela conhece. o chef nos dá rodadas e rodadas de comidas, bebidinhas e vem se sentar conosco para bater um papo. invariavelmente, chegamos ao assunto tatuagens, ao que reclamo que é muito caro se tatuar aqui em berlim. mostro minhas duas tatuagens para ele e ele faz uma cara de espanto seguida por risadas assim que mostro a do guarda-chuva.
não sabia que você era desse time, ele logo dispara.
eu rio, nervosa.
que time? hahaha.
me corta um desespero por alguns milissegundos – a tese de hegel de que o caminho do conhecimento é o caminho do desespero nunca foi tão real.
ué, pela legalização da prostituição.
começo a rir ainda mais de nervoso. como assim?
então ele me conta que o guarda-chuva aberto, na cor vermelha, é um símbolo público e notório pelos direitos das prostitutas. naturalmente começo a guglar "guarda-chuva prostitutas"."prostituição guarda-chuva alemanha". "putas vermelho guarda-chuva" e outras buscas similares. estavam lá. vários guarda-chuvas vermelho escarlate. arrogantemente abertos, altivos, sem vergonha alguma.
não é que fosse a mesma coisa, mas de fato os símbolos guardam uma semelhança. o que hegel acharia disso? "hegel prostitutas". "hegel prostituição direitos humanos". e um mar de alienação-reconhecimento-sexualidade-hegeliano chovem na indexação do google.
será que agora preciso me posicionar? pensei. afinal, essa luta virou minha também, bufos irônicos. (que a ironia perdoe meu privilégio e ignorância).
mas, companheiras e companheiros, a verdade é que não tenho uma opinião formada sobre essa luta. nem eu nem a amiga que me acompanhava no restaurante aquele dia. nem a maioria das amigas gabaritadíssimas para quem perguntei sobre a questão depois do incidente epifânico do restaurante mexicano. várias outras falaram da preguiça de continuar esse debate, que é muito comprimido entre a perspectiva liberal e aquela da opressão absoluta das formas de vida prostituintes.
"non mi piace" particularmente, lacrou uma amiga ativista finíssima, no meio de suas melhores férias italianas. e foi super pedagógica em um áudio explicando por que é contra a legalização da prostituição, mas odeia o grupo moralista que tende para esse lado também. adicionou ainda, para meu espanto, que até onde ela saiba, o guarda-chuva significa a luta queer.
outra amiga que, igual a acima, também já foi próxima da marcha mundial de mulheres, criticou a posição daquelas que são contra a legalização e fecham o olho para as dificuldades de inserção de pessoas trans no mercado de trabalho. e daquelas que brecam a regulamentação da coisa toda porque “prostituição” já é uma expressão do patriarcado e ponto final. por outro lado, defender a prostituição como liberdade de escolha e ficar só discutindo o sexo das anjas — todas iguais e não oprimidas — também só atrapalha.
uma terceira amiga foi mais enfática e expressou exatamente minha reação ao vivo quando descobri o dark, opa, sexual side do guarda-chuva:
[22/09/2024, 11:54:00]: Amigaaaaa do ceuuuu
[22/09/2024, 11:54:04]: Kkkkkkkkkkkk
[22/09/2024, 11:54:19]: Nossa não consigo nem opinar
[22/09/2024, 11:54:24]: KKKKKK
[22/09/2024, 11:54:26]: JUROO
[22/09/2024, 11:54:28]: Rindo mt
[22/09/2024, 11:54:34]: Como a vida acontece
e algumas outras ajudaram a construir mais dúvidas sobre a cruzada pela legalização da prostituição e os direitos das prostitutas. obrigada a todas que contribuíram para esse debate.
eu que não sou boba nem nada joguei o pepino para o chat gpt, que, obviamente, entendeu errado. daí veio me falar sobre a revolução dos guarda-chuvas em hong kong, que pedia por mais democracia. enfim, só ampliou meu espaço amostral de lutas e significantes possíveis para os pan-significados guarda-chuvas.
resumo da trama é: quanto mais, melhor. os guarda-chuvas sempre têm espaço para abrigar mais uma luta. espero que eles abriguem as lutas de vocês também.
um beijo e até a próxima,
má
Fiquei esperando aparecer a expressão "tempestade em copo d'água", e nada.
Amei a questão do guarda chuva e suas infinitas possibilidades!